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A caça ao caçador: o tráfico de animais no Brasil

Detentor da maior biodiversidade do planeta, 90% dos animais contrabandeados no país são pássaros

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h08 - Publicado em 24 nov 2018, 10h00

A cada ano, milhares de animais silvestres são vítimas do tráfico no Brasil. Isso quer dizer que aves, répteis, primatas, entre outros, são sequestrados de seus habitats naturais — na maioria das vezes, ainda filhotes ou quando o ovo sequer foi chocado — e caem no comércio ilegal da fauna. Desde 1972, é possível comprar algumas espécies de forma legal, com criadores certificados pelo Ibama, o órgão de fiscalização ambiental. Contudo, em um recente estudo feito pela agência federal, ao qual VEJA teve acesso com exclusividade, ficou comprovado que a criação legal dos animais estimula o tráfico e parte dos estabelecimentos serve para “esquentar” filhotes oriundos da natureza, e não da procriação em cativeiro.

Ao cruzar dados do sistema do Ibama, onde os criadores inserem as informações sobre os animais em cativeiro, com dados coletados em operações de fiscalização, constatou-se que 80% das anilhas de controle não são compatíveis com as datas de nascimento dos filhotes. Ou seja, 80% dos filhotes declarados no sistema são animais capturados adultos na natureza. Soma-se à fraude das empresas a dificuldade em manter encarcerados os traficantes que capturam os bichos. O principal exemplo da impunidade é o do traficante e ex-servidor público Valdivino Honório de Souza, preso por lavagem de dinheiro na cidade de Patos, no interior da Paraíba, desde o começo deste ano.

Apesar de a condenação ter sido pelo crime de esconder a origem ilícita do seu patrimônio, a atividade que ele exerceu desde 1996 foi a de traficante. Souza foi pego em flagrante 15 vezes e em todas foi liberado após a aplicação de multas. A lei de crimes ambientais não especifica o tráfico, mas cita como crime a conduta de “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre” sem autorização. Nesses casos, a pena é de seis meses a um ano de reclusão. Contudo, os crimes que não preveem quatro anos de prisão são os de menor potencial ofensivo e, por isso, a prática é aplicar penas alternativas, como serviços à comunidade. Por sua vez, a lavagem de dinheiro resulta em até dez anos de prisão.

À legislação branda, soma-se a falta de conscientização quanto à proibição de manter animais silvestres como bichos de estimação e, na última década, a transição da oferta e da demanda para as redes sociais. Em junho deste ano, o Ibama realizou uma operação nas redes sociais e encontrou 1 277 animais à venda na internet. Foram cumpridos 34 mandados de busca e apreensão em 15 estados, com o resgate de 137 animais, 12 pessoas detidas e a aplicação de 518 600 reais em multas. 85% dos alvos atuavam no Facebook. Enquanto há equipes que trabalham na área de inteligência para monitoramento de redes sociais e conversas em grupos de aplicativos, qualquer cidadão consegue encontrar anúncios na internet. A pedido de VEJA, a agência BTB Data analisou quase 30 000 menções a animais silvestres nas principais redes sociais e sites de comércio online. Apesar de 24% das negociações acontecerem na Deep Web, o mercado negro da internet, a maior parte delas, 55%, é realizada à luz do dia, principalmente no Facebook. A arara-azul, que pode ser criada em cativeiro, estava à venda ilegalmente por 5 000 a 7000 reais, enquanto uma loja online licenciada cobra 85 000 reais pela ave. Mais detalhes da pesquisa foram publicados na edição nº 2604 de VEJA, em 17 de outubro, disponível no acervo digital da revista.

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Por ser um crime que não é levado a sério nem mesmo pela sociedade civil, a venda de animais nunca precisou se esconder tão a fundo na internet. Aqueles que comercializam a fauna na deep web o fazem porque, normalmente, também praticam outros delitos, como tráficos de armas e drogas. “Assim como pessoas mantém animais irregulares na porta de casa, a mesma falta de noção se reproduz nas redes sociais”, explicou o coordenador de operações do Ibama.

Com casos parecidos com o de Valdivino, agentes passaram a investigar as ramificações dos ilícitos para executar penas. De acordo com o coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Roberto Cabral Borges, “o tráfico de animais compensa no Brasil. O criminoso consegue se aposentar com lucro e sem ser preso”. Para atacar o problema, existe o projeto de lei 347/2003, que torna o tráfico de animais um crime qualificado. Em regime de urgência na Câmara desde 2016, ele ainda não foi votado. Ao mesmo tempo, há uma regra a ser votada pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que pode piorar a situação. A proposta reduz a documentação necessária para o transporte de animais no país.

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Para se ter ideia, apenas no caso de Valdivino, um dos poucos registrados ao longo dos anos, ele afirmou que, entre 1996 e 2016, viajou às regiões sul e sudeste do Brasil a cada dois meses para atender a demanda de seus compradores. Em cada uma dessas oportunidades, obteve aproximadamente 3 000 reais de lucro líquido. Com base apenas nas declarações de Valdivino, foram 64 viagens no período, que resultaram em 192 000 mil reais. O Ministério Público Federal não acredita que este valor represente todo o espectro do comércio ilícito narrado, mas as informações do traficante serviram para chegar ao mínimo que ele lucrou com suas atividades.

De acordo com Borges, as tradicionais feiras populares, onde os pássaros são vendidos ilegalmente, começaram a migrar para a internet. Como a rede social mais popular para o crime ainda é o Facebook, ela concentra milhares de pessoas que fazem anúncios sem pudor. Um dos grupos públicos, “feira do rolo de passarinho”, tem quase 6 000 participantes. Em média, 30 novas postagens de compra e venda são feitas diariamente. Em alguns casos, a entrega é feita pessoalmente. Em outros, enviam os animais pelos Correios, como uma correspondência comum. De acordo com os dados da BTB Data, cobras e serpentes representam 24% das buscas online, o que se justifica pela capacidade de manter a temperatura corporal estável por mais tempo e sobreviver ao transporte. Na sequência, lagartos, camaleões e iguanas representam 19% das buscas na internet, seguidos por aves, com 18%.

Detentor da maior biodiversidade do planeta, 90% dos animais contrabandeados no Brasil são pássaros. A maioria é capturada no nordeste e abastece os mercados dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Para fora do Brasil, as principais rotas são de Fortaleza, no Ceará, e dos portos do sudeste, como Rio de Janeiro e São Paulo, em direção a países europeus, como Portugal, Alemanha, Holanda e Bélgica. Há outra rota em direção aos Estados Unidos, que inclui uma parada no México para atravessar a fronteira. Países como Arábia Saudita e Tailândia servem como intermediários até os destinos finais, como as nações europeias. Na Amazônia, peixes ornamentais abastecem o mercado colombiano. Segundo o delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, é impossível estimar o volume que atravessa as fronteiras do país. “Não há como medir algo que é clandestino. Mas sabemos que as espécies com maior valor no mercado vão para fora”, afirmou.

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De acordo com Felipe Feliciani, analista de conservação da ONG WWF-Brasil, ao contrário do mercado interno, motivado principalmente pela demanda por bichos de estimação, o externo é alimentado por colecionadores de fauna exótica. Por isso, na família dos psitacídeos, as araras azuis e vermelhas, encontradas à venda na internet, são muito procuradas pela beleza das cores. Porém, Feliciani revela que uma há um novo alerta vermelho. Em países que dividem a fronteira da Amazônia, como Suriname e Bolívia, percebeu-se o aumento de caça a onças-pintadas para abastecer o mercado chinês. A crença vinculada ao uso de partes de animais para curar desde ressacas a câncer, que antes se abastecia com partes de tigre, passou a investir no felino sul-americano. “É fácil cruzar a fronteira e os animais não respeitam os limites do mapa. A caça pode acontecer dentro do Brasil e o transporte sair de um país com menor fiscalização”, disse Feliciani.

Segundo uma investigação feita pela ONG World Animal Protection, no Suriname, país que faz fronteira com o Amapá, estado na Amazônia brasileira, onças são caçadas por 260 dólares cada. O pagamento também pode ser equivalente a 20 gramas de ouro ou um carro novo. Depois, um intermediário leva os animais mortos às áreas urbanas para que as partes usadas na medicina oriental sejam processadas em lojas chinesas. Estes pagam entre 2 000 a 3 000 dólares por animal.

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Um dos produtos é a chamada “pasta de onça”, resultado de um processo de desmembramento, cozimento e secagem que pode levar até sete dias para ficar pronto. No fim, a substância se parece com um creme negro transportado ilegalmente em tubos. Acredita-se que o produto cure os sintomas de artrite, aumente a vitalidade e elimine toxinas do corpo. Cada onça pode render entre 20 a 30 tubos, vendidos por 785 a 3 000 dólares cada um. Os dentes e as garras dos animais são vendidos inteiros ou com ouro. Um dente inteiro custa entre 67 a 500 dólares, enquanto a peça com ouro vai a 1 200 dólares.

Uma pesquisa da ONG WWF das Guianas encontrou indícios de negociações com caçadores brasileiros. De acordo com a organização, a pele pode ser trocada por armas de fogo na fronteira ou vendida por 500 reais.

De acordo com a ONU, o crime movimenta 23 bilhões de dólares por ano e é o quarto maior no mundo, depois de tráfico de drogas, pirataria e tráfico de pessoas. Estima-se que o Brasil participe com 5% a 15% do total mundial e, no país, o crime movimente 2,5 bilhões de dólares por ano.

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VEJA acompanhou uma operação de fiscalização da polícia civil em São Paulo. Em uma residência, Maria Tereza da Silva, de 65 anos, implorava para que ela pudesse ficar com os seus cinco papagaios. O mais velho, de 27 anos, era de sua mãe. De acordo com ela, no começo do ano havia dez papagaios na mesma casa, mas os outros voaram em busca da liberdade. “Eles são livres, podem ir embora a hora que quiserem”, repetia desolada. Este cenário, comparado com o de Valdivino Honório, é parte da dificuldade na fiscalização ambiental. De acordo com o coordenador de operações do Ibama, “no crime ambiental, o usuário é tratado igual ao traficante. A vovó que tem o papagaio no quintal de casa recebe a mesma multa que o sujeito que transporta 200 filhotes em um caminhão”.

Por mais que Maria Tereza tenha herdado papagaios de gerações anteriores, a responsabilidade no flagrante é apenas dela. Fundador da ONG SOS Fauna, que atua na conservação e combate ao tráfico de animais, Marcelo Pavlenco Rocha afirmou que a cena é comum. “Isso estimula o tráfico. O vizinho, a amiga, a prima, pessoas vão querer ter animais por acharem que não é errado mantê-los como pets”, disse. Em outro endereço, José Gonçalves Braga, aposentado, mantinha 28 pássaros e afirmou que constrói e vende gaiolas, mas negou comercializar as aves. Gonçalo diz que cria pássaros porque gosta de ter os bichos.

Ao mesmo tempo, o que fazer com os animais após a apreensão é um problema tão grande quanto aquele que o precede. Como são endêmicos de outros estados, o correto seria devolvê-los aos seus locais de origem, o que não acontece por falta de recursos dos estados para o transporte dos animais – uma operação do tipo pode custar centenas de milhares de reais. De acordo com a geneticista Juliana Machado Ferreira, especialista em ciência forense na vida selvagem, as consequências do crime se estendem em cadeia. “Quando se tira um animal da natureza, ele deixa de cumprir funções ecológicas, o que gera um desequilíbrio no ecossistema”, explicou. Contudo, o país não acompanha essas transformações. No Brasil, o exemplo mais emblemático de extinção por tráfico é o das ararinhas-azuis. Consideradas extintas da natureza, alguns exemplares são mantidos em cativeiro fora do Brasil e uma parceria entre os governos da Bélgica e da Alemanha pretende reintroduzi-los ao habitat natural. Contudo, um dos medos de ambientalistas é que o mesmo problema se repita: soltas, se tornarão alvos de criminosos. Cabe ao país tomar as medidas para que o crime deixe de valer a pena.

Este artigo foi produzido por Veja como parte do programa ‘Reportando o comércio online ilegal de vida selvagem’. O projeto é uma parceria entre a Thomson Reuters Foundation e a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado, financiada pelo governo norueguês. Mais informações estão disponíveis em: https://globalinitiative.net/initiatives/digital-dangers. O conteúdo é de responsabilidade do autor.

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